O iconógrafo é aquele que transcreve os ícones que foram legados pela tradição da Igreja, e para cumprir esta tarefa necessita da fé, conhecimentos técnicos e sensibilidade...

-Frei Celso-

Exposições



Textos referentes às exposições individuais

Exposição “Ícones luz do divino olhar” (2003)

Ícone: um infinito Olhar sobre a alma humana
                               “Ver a Deus” – esse é o desejo de infinito que está na raiz de tantos desejos humanos de felicidade. A ânsia infinita, ver a Deus, torna insatisfatórios e mesquinhos os desejos mundanos, e, ao mesmo tempo, é um desejo impossível. Pois, como ver a Deus, puro espírito em luz inacessível, incomensurável e inimaginável? E, no entanto, apesar do grave mandamento de nem pronunciar o nome e nem esculpir imagem de Deus, o salmista clama insistente: “Quando verei a vossa face”?(cf. Sl 17,15; 44,24; 139,7; 143,7)
O que é impossível ao desejo humano, no entanto, é possível a Deus: Em Jesus, ele revela a sua face. Ao discípulo que lhe pergunta ansioso – “mostra-nos o Pai” -  Jesus responde: “Quem me vê, vê o Pai”(cf. Jo 14,8-9). Assim, a humanidade do Filho de Deus abre, desde a iniciativa graciosa do próprio Deus, o que é humanamente impossível: que Deus se incline sobre nós e que nossos olhos de carne vejam algo da face luminosa de Deus. Ele mesmo satisfaz e aquieta o desejo mais alto e, paradoxalmente, o levanta ainda mais. “Agora vemos em espelho... mas depois veremos face a face”(1Cor 13,12). Esta experiência cristã é o segredo do Ícone.
 Ícone é palavra grega que, simplesmente, significa “imagem”. Hoje, a palavra faz parte do mundo da arte e da moda, e da comunicação em geral. Mas aqui tratamos do ícone que nasceu com a sensibilidade cristã, desde o primeiro milênio, um pouco por toda a Igreja de língua grega, no Oriente cristão. Tratava-se de tecer a representação de Cristo, e de Maria e dos Santos em torno a Cristo, em quadros como lugar de contemplação dos mistérios revelados, acontecimentos humanos transfigurados pela presença sempre luminosa da face mesma de Deus. Portanto, não basta afirmar que se trata de uma forma de arte e de beleza. É uma forma de revelação, de Bíblia visual, de teologia e de liturgia.
Como arte e beleza, o ícone não depende da subjetividade do iconógrafo. Este se insere humildemente numa tradição cuidadosamente transmitida, com cânones laboriosamente edificados e respeitados, cujos significados convidam a serem bem vividos para serem reproduzidos e compreendidos. O ícone não é nem uma reprodução da natureza das coisas e nem interpretação subjetiva, não é expressão do iconógrafo. É uma configuração simbólica, tecida toda de elementos sobriamente simbólicos, de forma que se tornem claros em sua beleza. Os cânones, de longa e estável tradição, dão ao ícone a objetividade da mensagem visual, como nos rituais, solenes e sóbrios ao mesmo tempo, ou na proclamação das palavras milenárias do evangelho, em que acolhemos a revelação do eterno no efêmero, da grandeza na simplicidade, do sublime na humildade.
Entre os cânones, destaca-se a bidimensionalidade do quadro, portanto sem volume dos corpos e sem perspectiva para o fundo, que seria tridimensionalidade, evitando assim a convergência da perspectiva para si mesmo e permitindo a “perspectiva para frente” (ou “invertida”), do quadro, da figura, sobretudo do rosto, mas também da posição das mãos, dos corpos, em direção a quem contempla: o ícone é um olhar face a face, que tem sua iniciativa na figura representada, convidando quem contempla a entrar nessa relação face a face. Essa é a diferença entre um ícone e um ídolo, que também é imagem.
O ídolo se ergue num palco iluminado deixando os olhos dos fãs no escuro, exigindo os olhos todos para si, fascinando-os, inquietando-os e consumindo-os no jogo do desejo. Tributos, aplausos, sacrifícios mil são necessários para sustentar o ídolo, que vive do desejo dos fãs e os retribui num jogo e num mercado de trocas.
O ícone é absolutamente o contrário: pousa um olhar sereno sobre quem lhe está próximo, irradiando luz própria, a luz que provém da revelação de proximidade e humanismo de Deus. É um evangelho visual, tecido de beleza pacífica e inocente, que ilumina os olhos e a alma de quem se coloca sob o olhar do ícone. As figuras - de Cristo, mas também as outras figuras dos evangelhos, da história da salvação - aparecem sobre um fundo dourado e luminoso, indicando, ao contrário do ídolo que seqüestra a luz dos nossos olhos e do nosso desejo, que o ícone irradia uma luz transcendente em pura e tranqüila graça, luz com potência própria inundando o ambiente de forma pacífica, sem nada exigir ou inquietar. Não explora tormentos da alma nem suscita ambivalências de desejos turvos, simplesmente doa a claridade do mistério. O ambiente iluminado por sua face se torna um seio de luz divina, um regaço de acolhimento na graça.
Entre as regras da iconografia privilegia-se, por isso, os olhos, que podem ser bem representados de forma a se salientarem como grandes fontes de luz, sempre serenos e maternais, como a mãe que olha por sua família e cuja presença envolve o ambiente com um regaço acolhedor. As mãos, por sua vez, podem ser estilizadas delicadamente mais longas do que o natural, por serem também símbolo de uma orientação, um gesto de “tomar pela mão”, de indicar uma transcendência para além de si. As figuras, em suas posições inclinadas, por exemplo, convergem para a figura de Cristo, e a própria figura de Maria, a Mãe de Deus, lhe faz de entorno, de tal forma que tudo permanece na reverência do mistério revelado e na linguagem visual que estende seus raios através das diversas figuras. Por isso as figuras simbolicamente mais importantes podem ser maiores, e fatos de épocas diferentes podem estar juntos, pois o espaço e o tempo se reúnem sob a revelação do eterno centrada no mistério de Cristo. As linhas e as cores das roupas, os símbolos tomados da natureza, como a árvore, a rocha ou a gruta, e também da construção humana, como a mesa, o estrado, o trono, a casa, a cidade, tudo tem seu estatuto simbólico tomado da Escritura e da cultura, sem pretensão de revelações novas. No ícone nada é ambíguo, nada se esconde, nada deve intrigar: as diferentes partes se integram na convergência para um centro do qual recebem coerência e clareza. O mistério cristão é para ser revelado em simplicidade, ainda que inesgotável.
O ícone, com sua linguagem de beleza ótica, se integra à beleza sonora do canto sacro, ao perfume do incenso, ao movimento comedido, na liturgia em que se faz presente e atua o mistério divino. Por isso o iconógrafo pode ser comparado a um evangelista e a um sacerdote. Sobre seu trabalho invoca o Espírito Santo, como também se abençoa solenemente o ícone, com incenso e invocação, ao ser colocado em seu lugar no culto ou levado em procissão. É uma oração semelhante àquela que se faz invocando o Espírito sobre o pão e o vinho para que aconteça o sacramento da Eucaristia. Essa analogia pode ser aprofundada: se o pão e o vinho se tornam presença do Senhor na celebração eucarística, se a palavra das escrituras é revelação divina, o ícone é uma forma de presença divina no ambiente, irradiando discreta luz de um verdadeiro cosmos divino, transfigurando as trevas com a sua luz generosa, um olhar e uma janela que se abrem sobre a alma humana e permitem ver o que também se escuta e se sente de Deus e suas manifestações.
Assim se entende o cuidado da Igreja oriental, sobretudo dos monges e do povo, em conservar o direito de ter quadros com ícones para a contemplação, para a liturgia, para ter um olhar que ilumine as suas vidas.  Resistiu aos intelectuais iconoclastas (destruidores de imagens), uma elite de puristas da corte bizantina que, em nome do mandamento religioso de não ter imagens de Deus, esquecia o que é mais central na fé cristã: que, em Jesus, Deus se fez Corpo, Face e Olhar que nos ilumina. Por 130 anos, entre 726 e 843, houve até martírio por isso, pois defender os ícones era como defender a Eucaristia. Por outro lado, a Igreja oriental encontrou o equilíbrio. Não adotou a profusa estatuária grega, pois a estátua, essa sim, corre maior risco de manipulação, de certo narcisismo e, portanto, maior risco de degradação do transcendente. Permaneceu com ícones em quadros bidimensionais e com “perspectiva para a frente”, onde a imagem é o sinal de uma relação face a face entre o infinito olhar de Deus, em Cristo e nos seus Santos, e a alma humana de quem contempla reverente no silêncio de um espaço iluminado por esse santificante olhar.
No meio do mundo agitado das atividades cotidianas, no fragor das coisas efêmeras, sentar-se e descansar um instante sob este olhar de repouso é como beber da água pura da fonte, é enraizar-se nos mistérios bíblicos, revelados por uma luz cristalina e calma, e sair transfigurado para irradiar sentido e profundidade às ações cotidianas.

(Frei Luiz Carlos Susin - Porto alegre, novembro de 2003)

Exposição “Speculum Bestiarum” (2008).

Espelhos do nosso mistério
Speculum Bestiarum: eis o nome, tanto enigmático quanto evidente, da recente mostra de pinturas do artista plástico e frei capuchinho Celso Bordignon. Saindo do latim, teríamos algo como “espelho das bestas” ou “bestas no espelho”. Se há que se ter cuidado nas leituras decorrentes do simbólico tema da bestialidade (e que ninguém caia na tentação rasteira de logo pensar na expressão dos tabus de um religioso), mais cuidado ainda se exige na temática dos espelhos. É bom caminhar devagar nesse universo, sob risco de sucumbir ao poder das bestas que espiam das sombras.
Na arte, o bom senso diz que é preciso mais ver, perceber e sentir do que interpretar ou buscar um significado. Mas o que vemos? O que captam as retinas no primeiro vislumbre?  Vejamos. Em suportes de madeira estão pinturas com figurações sutis (algumas mais explícitas), entre múltiplas possibilidades de construções de formas, sinalizadas por camadas superpostas de cores e linhas, isso na técnica da têmpera a ovo, ou por relevos, colagens e texturas, nos trabalhos realizados em encáustica.
As figurações esboçam ou definem seres fantásticos, da animalidade exótica ao humano distorcido. São animais e monstros do imaginário coletivo. Mas há espelhos entre as pinturas. Há no título o espelho, que aqui é objeto e metáfora. No cauteloso passo recomendado, postemo-nos, então, diante do objeto nomeado. Espelhos revelam, são quase sinônimos de verdades cristalinas, mas também podem falsear. Basta uma luz indireta, um olhar mais oblíquo ou uma curvatura na superfície refletora, e pronto: a imagem que se vê não vai corresponder ao real. Esse jogo entre a realidade percebida num reflexo e aquela outra do objeto material intriga e fascina os homens desde o mito de Narciso até a moderna literatura de Jorge Luis Borges.
Também nossos olhos funcionam como espelhos, recortando do ambiente externo projeções que nos parecem absolutamente concretas, mas que são subjetivas. Esquecemos que a moldura do olhar é desenhada em nosso íntimo por desejos, por emoções claras ou escuras, pela memória, pela cultura.  E vivemos a vida nessa ilusão de um real sempre a nos escapar. Ignoramos que, nos desvãos e frestas dessa zona de penumbra entre o real e o desejo, habitam as bestas, enquanto desvios do humano. Se os olhos são mesmo as janelas da alma, é por eles que vão entrar ou sair nosso bestiário particular. Por isso, amigos incautos, cuidado com o que possam enxergar. As possíveis bestas espelhadas, e o susto ou simpatia ante elas, vão revelar somente a nossa própria constituição.
Nesse ponto, uma vez assumida a responsabilidade sobre a nossa capacidade de ver e reconhecer na própria alma o bestiário esboçado nas pinturas, podemos, então, refletir sobre alguns sentidos. Uma questão que talvez se imponha logo é aquela acerca da condição do artista como um religioso. A última exposição individual do frei Celso Bordignon foi Luz do Divino Olhar, em 2003, somente com ícones cristãos. Ali, uma luminosa transcendência era mais que sugerida nas pinturas executadas com rigor milenar. Cada quadro era um apelo a uma epifania que não carecia de vinculações místicas. Eis que agora, com Speculum Bestiarum, feito um moderno alquimista, o artista desde a matéria mais bruta e informe, ao reino das bestas...
Seria a exploração do humano, sem o qual o divino permanece etéreo? Sim, sabemos, o humano é animal e divino, e a base da teologia cristã é a encarnação do Filho de Deus. O que foram as tentações de Jesus senão um duelo do divino contra as bestas da alma humana? Como uma saga possível do homem impuro em direção à salvação, a Bíblia é rica em bestiários. No primeiro livro, há a serpente; no último, a besta do Apocalipse, e o próprio Cristo foi simbolizado como um cordeiro e, depois, como um peixe. Logo na fachada de muitas catedrais vemos horrendas gárgulas. Parece mesmo impossível desvincular o bestiário do sagrado, já que se tratam de instâncias extremas de um mesmo caminho de purificação do humano. Assim, pintar as bestas é também uma forma de exaltar o divino. Portanto, não pode haver estranhamento quanto a esse tema inspirar uma mostra de arte de um frei franciscano. E cuidado, de novo: rejeições a isso certamente teriam algum sombrio fundo bestial...
Outra via de busca de sentido nessa mostra, para além da terminologia ligada ao conceito de alma, diz respeito ao inconsciente definido pela psicologia. Convivemos com um mundo inteiramente desconhecido, dentro de nós, mas nem por isso um mundo sem vigor. Pelo contrário. É um reino habitado por potências carregadas de desejo. Entre sombras, há intenções arcaicas aí. O psicólogo Carl Gustav Jung já afirmava que o homem civilizado ainda carrega uma cauda de lagarto. Não fosse assim, não haveria holocaustos e violências cotidianas sempre a desafiar a razão. Não podemos eliminar esses impulsos, apenas reconhecê-los e integrá-los numa canalização criativa.
Nomear e figurar nossas bestas são modos de transformá-las. Pois elas nos espreitam nos sonhos e nos arrebatam em momentos de desvario. Talvez a função das bestas em nós seja a de nos lembrarmos todo o tempo de nossa condição imperfeita e a de ministrar a força bruta para a nossa evolução. Há um fascínio nelas. O poeta Rainer Maria Rilke estava coberto de lucidez quando escreveu: “Se meus demônios resolverem me abandonar, tenho medo que meus anjos também alcem vôo”.
O artista Celso Bordignon igualmente foi lúcido ao domar a besta do medo, transformando-a em força para levar adiante um projeto de duas décadas em cima do estudo do bestiário. Também na construção das obras o artista praticou uma redenção, dando nova vida ao que seria destinado ao lixo: os suportes das pinturas são tábuas de antigos altares e oratórios carcomidos pelo tempo. Os modelos para as figurações vieram de cascas de madeira de móveis velhos ou de gravetos da natureza e de manchas em superfícies. Daí, coexistem nessa mostra pictórica o real e o ilusório, o divino e o bestial, o antigo e o moderno – uma pintura em encáustica, por exemplo, cola a um monstro um chip de computador. Dualidades e extremos de nossa condição de humanos, demasiado humanos, e que a arte vem convidar a uma nova revelação.
Nivaldo Pereira – Jornalista (Caxias do Sul, Abril de 2008).


Speculum Bestiarum
O olhar percorre a superfície das paredes manchadas, os fragmentos de madeiras carcomidas, as cascas destacadas dos troncos e as coisas abandonadas à procura de formas. Essas se transformam em seres fantásticos que adquirem personalidade.
No meio das sombras coloridas, das profundezas da alma emergem as bestias que ameaçam os passantes e lutam entre si pela posse umas das outras. Criaturas multiformes lembram algo que existiu ou existirá.
Alguns seres rastejam outros voam, outros se contorcem ao serem devorados numa luta sem fim em recônditos espaços da alma.
Seres aprisionados, empilhados, socados em espaços exíguos, prontos para serem devorados e para devorarem.
Minha tarefa é buscar e encontrar em realidades obscuras, as feras, os demônios e os monstros. Dar-lhes forma e trazê-los para a luz condenando-os a uma existência de liberdade.
Criaturas por nós criadas e sobre as quais temos todo o poder. No entanto por elas nos deixamos dominar. Animais interiores aprisionados por sutis grilhões os quais não queremos libertar. Eles nos dão força, mas, também nos debilitam.
Speculum bestiarum no qual contemplamos a nós mesmos e aquilo ao qual nos reduzimos. Condenados e devorados pelos monstros que criamos dentro e fora de nós mesmos.
(Celso Bordignon – Caxias do Sul, 27 de março de 2008)